Todo texto que a gente escreve deve ficar de molho um pouco, para com a cabeça fria revisarmos. Não é o meu caso até o momento. Várias coisas para entregar de um dia para o outro. Então como considerar escrever algo com correção? Mas vale o exercício. E as crísticas, é claro.

Maradona, um olé na Rainha

 Um revolucionário mexicano, desses filmes do Sergio Leone ou do Sam Peckimpah. Assim parecia Diego Armando Maradona a Emir Kusturica, o diretor bósnio que foi à Argentina contar a história do que seria para ele o maior jogador de futebol de todos os tempos, e que ouviu o craque contar o que significou aquela “mãe de deus” que ajudou a Argentina a vencer a Inglaterra na Copa do México, em 1986. Maradona confessa a Kusturica que sentiu como se estivesse batendo a carteira da Rainha, num golpe certeiro e merecido. O diretor bósnio então aponta o que está em questão, além de um grande jogo mundial de futebol. Um país arruinado pela dívida externa consegue triunfar através de seu herói dos gramados sobre uma das maiores potências econômicas – e bélicas – do mundo.

Sim, não se pode esquecer a questão bélica que deixa marcas profundas na Argentina contra a Inglaterra até os dias de hoje. As Ilhas Malvinas ficam situadas no Atlântico Sul e outrora foram tidas pelos espanhóis como território descoberto por eles. De outro lado, britânicos entendiam que aquelas terras lhes pertenciam e, dentre várias disputas, os ingleses acabaram colonizando as Malvinas. No ano de 1982, a Argentina vivia uma ditadura militar em crise, a dívida externa era enorme e havia um alto índice de desemprego. Tentando popularizar o regime político e retirar a atenção dos argentinos do problema principal, tentando atingir-lhes o sentimento de nacionalismo, o ditador Leopoldo Galtieri, tomou a decisão de invadir as Ilhas Malvinas, que há tempos era motivo de divergências entre argentinos e britânicos. A um determinado momento, a Argentina obteve sucesso em sua empreitada e tomou as ilhas, sem, no entanto, usar de violência com os civis que ocupavam o território. Porém a Inglaterra, comandada pela Primeira Ministra Margaret Thatcher, também encontrava-se em situação delicada, com opinião pública não muito favorável ao governo. Os britânicos voltaram para recuperar o território no Atlântico Sul, o que conseguiram fazer com sucesso. Mas não bastava recuperar as ilhas, a Inglaterra precisava se impor como potência inclusive bélica e mostrou sua autoridade através de ataques destrutivos e sanguinários.

Don Diego Armando Maradona não se esquece das Malvinas e dos inúmeros irmãos mortos pelos britânicos. Ele também prefere Cuba aos Estados Unidos – tanto que tem uma tatuagem de Fidel Castro na panturrilha e outra do Che Guevara no braço. E para Kusturica, esse guerreiro solitário dos campos de futebol poderia muito bem se enquadrar nos heróis – ou seriam anti-heróis? – de seus filmes. Esse bravo guerreiro, que tem muito a dizer sobre o que pensa seria como o Sex Pistols do futebol.

E o que seria o Sex Pistols? Foi uma banda inglesa de punk rock dos anos 1970 que durou apenas dois anos e meio. Uma das melhores bandas do gênero, contestadora de posturas dentro de seu próprio país, produziu apenas alguns singles e um álbum completo. Dentre seus singles está o/ polêmico God Save The Queen, que significa Deus Salve a Rainha e cuja primeira estrofe diz algo como Deus salve a rainha / Seu regime fascista / Fez de você um retardado / Bomba-H em potencial”. É essa canção nos ferozes acordes do punk que embala os gols do Maradona exibidos no filme Maradona by Kusturica. O ídolo argentino do futebol também passou depressa pelos campos, assim como a banda, por conta de drogas e turbulências. No caso da banda, até morte por overdose houve de um de seus integrantes, o Sid Vicious.

Maradona, como deus, driblou a rainha. Depois de assumir a guerra para si em campo, derrotar os ingleses e ter-se tornado um ícone nacional, os argentinos criaram a igreja maradoniana, na cidade de Rosário. Para os maradonianos o natal se comemora no dia do nascimento de Don Diego e a Páscoa se realiza no aniversário da vitória do século contra os ingleses, com a ajuda da mão de deus. Kusturica mostra o desenrolar desse culto, bem ao estilo fantástico de seus filmes. As rotineiras orações incluem o pedido para livrá-los de figuras como o João Havelange, brasileiro e ex-presidente da FIFA, acusado por alguns de corrupção e grande desafeto de Maradona, que ficou de fora na Copa de 1994 por ter sido pego no exame anti-doping. Don Diego considera-se vítima de uma armação do Havelange.

Entre dificuldades para adentrar o mundo do ídolo Maradona e a formação de uma amizade que conduz Don Diego desde seu antigo barraco num bairro pobre da Argentina, relembrando a vida humilde entre oito irmãos, até a terra do próprio diretor, em Belgrado, onde Maradona relembra grandes feitos seus do futebol em um estádio local, Kusturica mostra com generosidade como se constrói o carisma de um homem, a ponto de se tornar um ícone, um líder. Desde a pobreza presente nos bairros das terras de Maradona às ruínas dos conflitos europeus, Maradona conta o que lembra de sua trajetória num misto de orgulho e humildade. Eles então seguem, em 2005, para o Mar Del Plata, na última Cúpula das Américas que tratará sobra a ALCA. Seguem num trem e Kusturica enxerga em Maradona a força de um líder e a ingenuidade de um ideal.

Entre um mar de pessoas, Hugo Chaves, presidente da Venezuela discursa. Evo Morales ao seu lado e um grande cartaz com suas fotos, além de Fidel Castro e Lula. Chaves chama Maradona que diz que estar ali em defesa do povo argentino e chama Bush de lixo humano. Eles discutem na última Cúpula das Américas a proposta do Acordo de Livre Comércio das Américas, que desde então ficou totalmente enfraquecida, quase esquecida. A ALCA foi proposta em 1994 pelo presidente dos Estados Unidos, George W.Bush, o pai. Caso entrasse em vigor, 34 países das Américas, exceto Cuba, se relacionariam sem restrições alfandegárias, o que era visto com ressalvas devido ao discrepante poder norte-americano diante dos outros americanos.

Entre o idealismo socialista, os discursos contra figuras políticas, seu sucesso do Boca Júnior e na Itália, inclusive contrariando interesses de grupos mafiosos, de acordo com o próprio jogador, Maradona se viu entregue às drogas, em coma por causa da cocaína. E com intimidade ele conta para o diretor bósnio e para a câmera a sua vida. Ele não se esconde. Sente-se culpado e dirá “Que jogador de futebol eu seria se não fosse a cocaína?”, porque Don Diego queria continuar crescendo e fazendo, mas sabe que jogou fora a sua oportunidade.

O filme feito por Kusturica se aproxima do grande ídolo do futebol argentino, um dos maiores jogadores que o mundo já teve, desses que não se vê mais em nenhuma partida de futebol na atualidade. O diretor, fã que é do jogador, apresenta o homem sem abrir mão da fantasia, bem ao seu modo de fazer cinema: realismo fantástico. Esse é o fio condutor de uma bela e empolgante história, que costura a garra e os tropeços de uma nação com os passos do seu próprio ídolo esportivo, Maradona, ator de sua própria vida. Ela é como um teatro, um cinema. Então Kusturica lhe pergunta qual é o seu ator favorito e ele lhe diz “De Niro.” Por que será essa a sua escolha? Então o diretor lhe pergunta: “O Touro Indomável?” Sim, Maradona é exatamente isso. O touro indomável dirigido por Scorsese e interpretado por Robert de Niro. Um pugilista explosivo, terrível, mas antes de tudo um homem com sonhos e que queria dar certo. Alguém que não é nem um pouco politicamente correto, mas que nas entrelinhas de um mito contado em incríveis histórias nos desperta afeto. Por mais que ele vire a mesa, é um homem bom. Pois é o touro indomável argentino. E deu um olé na rainha.