A face humana de Grucha, em O Círculo de Giz Caucasiano, é o contraponto do teatro épico, envolvendo a paixão necessária,sem anestesia

O bebê foi deixado sozinho, abandonado à própria sorte, em meio às explosões da revolução. Filho do governador decapitado, em breve os revolucionários o encontrariam e não lhe dariam um fim diferente ao do seu pai. Mas Grucha, relutante, olha para trás e, apesar de todos os conselhos, não concebe outra coisa a respeito de Miguel, é uma figura humana e inocente, que necessita de seus cuidados. Então Grucha, a criada bobinha, que está sempre pronta a ajudar de alguma forma, permanece ao lado da criança, servindo-lhe leite e companhia, até que a toma nos braços e foge, esquecendo as promessas feitas ao noivo, seu destino, seus planos. Foge para garantir à nobre criança a chance de sobreviver e ser cuidada. Ama o pequeno abandonado desde o primeiro instante, toma-o para si e muda a sua história.

Esta é a sinopse, tal como absorvo, de O Círculo de Giz Caucasiano, escrita por Bertold Brecht. A peça não conta especificamente a história de Grucha, mas a encenação de sua história para camponeses guerrilheiros. Grucha é uma lenda para ajudar na decisão da coletividade sobre o destino de uma aldeia, recuperada das tropas de Hitler. Assim começa a ser encenada a peça – uma peça dentro do espetáculo.

Esse é o teatro épico, concebido para que o espectador, membro das classes proletárias, de uma forma geral, se aproxime do discurso reflexivo a partir do teatro. E isso se dará, na proposta que se apresenta, a partir do distanciamento emocional de quem assiste – e do próprio ator – com as personagens da trama. O palco deixaria de ser palco para tornar-se uma tribuna, onde o entorpecimento do espírito dramático daria espaço ao estranhamento do discurso épico, conduzindo o espectador por caminhos de transformação pessoal e engajamento, de uma forma consciente, o incluído no âmbito da ação para além do aconchego da casa de espetáculos. O épico se oporia, desta forma, ao drama, pois ofereceria o distanciamento necessário ao espectador, a partir do gesto, do coro e de outros meios técnicos; não entorpeceria, tal como foi descrita a proposta do drama.

Grucha, no entanto, poderia ter saído da plateia, desprovida de politização mas arrebatada de sentimentos humanos, engajando-se contra a estranheza do mundo, se atracando com os indignantes atos a fim de proteger com unhas e dentes uma criança, a humanidade, que não é sua. O pequeno ponto de identificação da plateia com a causa de Grucha contrasta com a estranheza histórica das outras personagens apresentadas. Para todo o resto, Miguel, o filho do governador, é uma peça material, que desperta interesses ou medos estratégicos, apenas isso.

Nós, espectadores, talvez possamos nos travestir de Grucha, no processo de encenação, e refletir sobre os inconcebíveis sofrimentos por que passa, num mundo torto e injusto, onde impera o medo e o egoísmo. Somos todos Grucha, alheios à vida, a lavar no lago as nossas roupas, sem nos dar conta do que acontece a nossa volta e o quanto despertamos a atenção das figuras as quais nem notamos. Inocentemente seguimos nossa vida sofrida, até nos darmos conta de problemas que, a princípio, nada tem a ver conosco. Até nos aproximarmos, tal como Grucha, do outro, comparando com a nossa própria humanidade, com a fome que sentimos, a fragilidade a que estamos impostos e a dureza que teremos de enfrentar diante da fria linguagem do mundo, enquanto os sentimentos e pensamentos perduram quentes na nossa intimidade. Assim, inflamamos com a necessidade de ação diante dessa frieza, que isolam o pobre Miguel, a representação de nossas mãos atadas, que só serão percebidas por Grucha através de nossas percepções humanas.

Do que trata essa distância material e histórica que nos move tão intimamente para a ação, em O Círculo de Giz Caucasiano? Caso não existisse Grucha para acelerar o nosso espírito contestador, sequer haveria uma história. Os opacos interesses de todos os outros personagens não externalizam vigor na intimidade de cada um, mas apenas a materialidade do egoísmo. Salvem os objetos, salvem os alimentos, a própria pele, as armas, os medos. Mas esqueçam, para o seu próprio bem, os motivos de qualquer luta, a vida, a presença inocente dos nossos filhos. Miguel, entendido por este ponto de vista, seria o amanhã que apenas Grucha não esqueceu.

Miguel, ao começo da encenação, é um bem de valor inestimável, criado como um embrulho precioso e frágil. A criança coisificada tem tanto significado como a coroa de um rei. A mãe desta criança, ao longo da história, deixa transparecer a medida de valor do seu filho – é a fonte da sua riqueza, que só consegue conceber como algo material, através dos trajes e joias a que se reduzem sua vida. Até o momento de sua fuga, a mulher do governador, tendo o marido decapitado, procura salvar ao máximo seus vestidos e, com o risco iminente de um ataque contra sua própria vida, sai em debandada, esquecendo-se do filho. Miguel é esquecido e visto por alguns criados, que também se desesperam com a situação. Grucha, que por ali passa, aceita segurar Miguel por um instante, mas ninguém volta para buscá-lo. Os últimos que por ela passam a aconselham a deixá-lo por ali, por causa do grande problema que arrumaria para si caso mantivesse a criança consigo. Vale ressaltar que Grucha acabava de estabelecer o compromisso com um soldado, prometendo-lhe aguardar para o casamento. A criada tenta dar as costas para a pobre criança, mas não consegue se abster da humanidade ali presente, do sentimento de dever diante da fragilidade, do seu próprio sentido de viver – caso virasse as costas para Miguel. Grucha o alimenta e permanece com a criança até que leva consigo o pequeno garoto, pois a vida presente era o que importava naquele momento.

Caso encontrassem Miguel, os revolucionários o assassinariam com o intuito de impedir herdeiros para o nobre posto, até aquele instante tomado. E por isso Grucha caminha em fuga para fora da cidade. Nos trajetos percorridos, a moça permanece solitária, com grandes dificuldades de ser ajudada por aqueles que esbarram o seu caminho. Materialista demais, os homens presentes na história não se comovem com a fome, com o frio ou com uma triste história a ser contada. Os homens cobram caro pelo leite, independente de haver uma criança faminta em questão. As outras mulheres presentes na trama estão totalmente envolvidas pelas ideologias das classes as quais pertencem e não são demovidas de suas posições diante das peculiaridades dos fatos; o faro materno feminino foi abafado pelas posturas sociais: as nobres foragidas da revolução não dão sequer a chance para Grucha se explicar e abrigar, mesmo com uma fina criança nos braços; a mulher do fazendeiro é bonachona até se sentir ridiculamente ameaçada pela condição a que a foragida criança se encontra, a cunhada de Grucha poderia suportar apenas as mentiras que seu marido lhe contaria sobre a criada e o bebê, já que possuía firmes valores religiosos.

Miguel, por fim, se torna a própria vida de Grucha, os motivos do que deixou pra trás e também aqueles para onde deve seguir. E ela se entrega totalmente a esse destino até que lhe arrancam, como num parto, o garoto que criou. Porque restabelecida a antiga ordem, o lugar do filho do governador não pode jamais ser ao lado de uma criada. Grucha terá que ser julgada e quiçá punida com a morte, por ter cuidado de Miguel ao seu modo, ao modo da empregada. Tudo dependerá do julgador.

A sorte de Grucha é lançada na comédia das coincidências, quando passa-se por juiz o escrivão bêbado da cidade. A criada já não tem nada a perder, uma vez que já lhe tiraram o futuro pretendido e aquele que, de certa forma, lhe fora imposto, a partir de Miguel. Ela mesma então se distancia do mundo que se lhe apresenta, alheio a todas as suas lutas, revolta-se e impõe a sua voz. Nesse instante, mais uma vez Grucha representa a própria plateia diante da estranheza dos sentidos que lhes são oferecidos. Ela não teme e fala o que lhe vem a mente perante o Tribunal.

Grucha confronta todas as posturas rígidas e ocas dentro do contexto histórico, em que o amplo grupo de personagens atuam. A sua humanidade incondicional funde Miguel à criada, que passa a assumir os riscos de um como de ambos. Para que sobrevivam, arriscam-se juntos num momento só. A criada só passa a viver novamente a intimidade do roteiro quando novamente lhe colocam diante de Miguel e oferecem-lhe a disputa com a outra mãe, no círculo de giz. Para poupar a dor que não gostaria para si, fraqueja e deixa escapulir por duas vezes o menino de suas mãos. Mesmo assim se desespera com a possibilidade do rompimento do vínculo de caráter que criou com o menino. Miguel é fruto do seu amor, é a sua própria luta pela vida, o valor da fome, da caridade, do sacrifício. E certamente perderia essa vivência íntima de calor humano, caso voltasse para a plastificada condição histórica de sua mãe biológica, que jamais preservou vínculos naturais do afeto humano.

Grucha dá a lição da maternidade e sai de O Círculo de Giz Caucasiano para a intimidade de cada espectador. Ela não deturpa, com seu grau de emoção, o teatro épico. Ela é o espírito vivo da plateia que plana pelo espetáculo e volta modificado para o homem reflexivo que ali assiste Brecht.