Outro texto que acabo de escrever, sem tempo para as devidas correções. Que sobrem as críticas para os editores de plantão…

Mandela, comandante da própria alma

 Por ser estreita a senda – eu não declino, / Nem por pesada a mão que o mundo espalma; / Eu sou dono e senhor de meu destino; / Eu sou o comandante de minha alma.” Assim termina os versos que inspiraram Nelson Mandela, presidente da África do Sul entre 1994 e 1999, após passar quase trinta anos na prisão por lutar contra o Apartheid em seu país.

O Apartheid, política de segregação humana na sociedade que leva em conta a cor da pele do indivíduo, foi oficialmente implantado na África do Sul a partir do ano de 1948. Nelson Mandela formou-se em Direito e engajou-se em movimentos políticos que defendiam a posição do negro na sociedade. Envolveu-se em diversas manifestações pelos direitos dos negros e foi preso várias vezes na luta pela igualdade racial. A um determinado momento, a partir da década de 1960, o Congresso Nacional Africano, partido de que Mandela fazia parte, decidiu-se pela luta armada contra o apartheid. O CNA foi proibido e seus membros perseguidos. O líder sul-africano foi condenado à prisão perpétua em 1964 e conduzido à ilha de Robben, onde cumpriu boa parte de sua pena, numa pequena cela de aproximadamente 5 m².

O prisioneiro 466/64, como ficou registrado, desenvolveu naquele cubículo as reflexões que o levariam a governar uma nação multirracial, buscando forças naqueles poucos versos de Willian Ernest Henley, escritor britânico que viveu de 1849 a 1903. Nos mesmos versos, Clint Eastwood encontrou a inspiração para a narrativa de como unir uma nação. Invictus é o poema, também o nome do filme em que Eastwood conta como a África do Sul rompeu com o apartheid ideológico, após já extinto no campo político, através da estratégia do dirigente de uma nação para os jogos de Rugby. Eastwood faz cinema com o que encontra de comum entre um líder, seu povo e um time esportivo: são invencíveis.

O rugby é um esporte originário da Inglaterra e que sempre teve espaço entre os africanêres, isto é, o grupo étnico da África do Sul formado por brancos de origem calvinista, representantes de uma minoria quantitativa neste país enquanto dominante politicamente por todo período do apartheid. Durante a história de segregação da África do Sul, poucos negros praticavam o esporte. O filme Invictus mostra que, ao fim da política segregacionista e com a eleição de Mandela para presidente, o grande time de rugby do país, o Springboks, permanecia como um símbolo negativo do apartheid. Seus jogadores representavam uma elite de brancos que sempre oprimiram o povo negro. E por isso mesmo não era difícil de se ver grande parte da nação, que antes não tinha voz, torcer pelos times adversários, provenientes de outros países.

Com as mudanças políticas na África do Sul, o time de rugby passava por momentos difíceis. Antes opressores da grande massa popular negra, os africanêres se viam intimidados e ameaçados em seu próprio país, incertos do futuro de suas posições sociais e seus empregos, além de sua identidade cultural. Mas a política que Mandela previa para os novos tempos não era a tomada de poder pelo outro lado e sim a necessidade de agregar todas as etnias em uma só nação. E conta Eastwood através de Invictus que o então presidente africano, pelos quase 30 anos em que viveu encarcerado, aprendeu a perdoar aqueles que o privaram da liberdade, lutando como pôde para preservar o time de Rugby com todos os símbolos que representaram os brancos por anos, desafiando o restante da nação a abraçá-lo também como símbolo de unidade nacional. O esporte então se torna uma das grandes prioridades políticas de Nelson Mandela no decorrer de seu primeiro ano como presidente da África do Sul. É sua estratégia, mais que política, humana.

O que vamos enxergar aqui é a África do Sul nacionalizada pelo rugby através das lentes de Eastwood, considerando como verdade tudo o que de fato ocorreu na história do país ou não, apenas pela versão do cineasta. Faltando um ano para a copa do mundo de rugby e sem muitas perspectivas de vitória, Mandela convoca François Pienaar, capitão do time para uma conversa e lhe propõe a mudança, estabelecendo um laço de amizade e confiança. Que inspirarão um ao outro na condução para a vitória da África do Sul.

O grande desafio não é apenas vencer as disputas, mas nacionalizar o sentimento de identificação com o esporte no país. Por um ano, os atletas precisam se esforçar para ganhar a força e confiança necessárias às vitórias, mas também precisam conquistar grande parte dos sul-africanos, que a vida toda estiveram à parte na história nacional do rugby. Esses atletas terão que penetrar o mundo de seus concidadãos, ficar lado a lado de seu povo, brancos e negros treinando juntos, um ensinado ao outro. Enquanto isso, o presidente do país, que quando prisioneiro, a exemplo de seus irmãos nacionais, torcia sempre contra o Springboks, assume uma nova postura diante do time, difundindo a ideia de que um time integra uma mesma nação.

No desenrolar de sua estratégia de unificação a partir da identidade nacional com o rugby, Mandela ensina a Pienaar o espírito de resistência e vitória que o conduziu até ali. O líder negro desperta a admiração do capitão do time de africanêres, que a partir das mudanças políticas de seu país precisa de um novo paradigma referencial – não é mais a vitória de um grupo que está em jogo, mas a de milhões de homens que representam o país, onde a grande maioria é negra. É preciso contar com o coro negro para vencer e o exemplo para se admirar esse povo está diante dele, o presidente que sobreviveu às mazelas da prisão. O grito da salvação é lançado através do poema que dá nome ao filme, Invictus, que Mandela – Morgan Freeman – repassa para Pienaar – Matt Daemon. Os jogadores visitam a cela em que viveu o presidente, na ilha de Robben. Eles cedem ao carisma do presidente. A nação cede ao espírito de vitória que os identifica como nação no esporte. E, em 1995, quando a África do Sul cedia a Copa Mundial de Rugby, eles seguem invencíveis para a vitória.

Eastwood transformou em cinema um grande momento para a África do Sul, num recorte em que espectadores de todo mundo podem se reconhecer: identidade nacional através do esporte. Essa história foi retirada do livro Invictus – Conquistando o Inimigo, escrito pelo jornalista britânico John Carlin. Tanto o cineasta quanto o jornalista apreenderam bem os objetivos maiores da grande figura que é Nelson Mandela: não se trata da conquista política e econômica de territórios, a vitória almejada é a humana, em que se constrói o próprio destino, comandando uma nação como sua própria alma.