Só compartilho isso aqui porque eu escrevi nesse semestre. Mas não deu muito certo. É um trabalho feito para disciplina eletiva universal, que faço no Instituto de Letras, sobre Teatro. E como o professor deu muita liberdade para escrevê-lo, fiquei meio confusa e perdi o fio da meada.

Tchekhov, Stanislavski e Pirandello: da concepção do humano à percepção da personagem

Diante da folha em branco, o autor busca as personagens. A gaivota, que voa livre e faminta sobre um lago no interior, é a primeira que surge em suas linhas. Ela resta ferida, quase morta, pelos caprichos de um homem desocupado. Assim deveria se sentir Nina, personagem principal da peça teatral escrita pelo médico russo Anton Tchekhov, em 1896. A Gaivota me deixa com esse profundo sentimento de vazio, fortalecido pela aridez típica das províncias tchekhovianas. Talvez porque eu tenha vindo de uma cidade do interior e porque lá, assim como nas peças e contos do escritor russo, todo movimento intelectual soa artificial, afetado, desprovido da verdadeira vida.

A criança desejosa que podemos ser na pequena cidade do interior. Somos traumaticamente Nina, sonhando com o estrelato, o reconhecimento, apostando que o renome supre todas as outras faltas, e sobrevoamos o pequeno lago no campo, onde crescemos, nutrindo grandes esperanças do anunciado talento. Sobrevoamos inocentes e brilhosos, gaivotas famintas. Aos nossos pés, descansam todos que se conformaram com o que tem, ou que já viveram o suficiente para perceberem que o mundo nada de interessante lhes ofereceu. Nina – assim como Katherine, a pianista que sonha em ir para o Conservatório em Moscou, do conto Ionitch, do mesmo autor – alimenta sonhos juvenis e os persegue . Para logo adiante descobrir que o mundo é maior do que previra e inevitavelmente a ofusca. Embora tenha tentado, a vida trágica do interior permanece nela.

E tantos personagens quantos forem nessa história condenam-se no seu isolamento individual, trocando concepções rasas sobre existência e criação, ouvindo apenas os seus próprios anseios. Os dias e os anos passam, os discursos se repetem e a grandiosidade da peça de Tchekhov só se demonstra quando o espectador consegue perceber a trágica condição das personagens, a gravidade com que levam cada gesto da vida. Uma gravidade, no entanto, desprovida de qualquer conteúdo.

A gaivota é o símbolo perfeito da peça. Quando Tepliov acidentalmente assassina uma dessas aves e a coloca aos pés de Nina, não faz qualquer sentido para ela, uma jovem cheia de sonhos a realizar. A mente do rapaz lhe parece complexa demais. A importância daquela gaivota parece existir apenas porque ela inspira Trigorin, a quem Nina admira. O escritor tem a ideia de um conto curto sobre uma jovem que, assim como sua interlocutora naquele momento, é cheia de vida e amante do lago, até surgir um homem que, por não ter nada a fazer, a destrói. Após alguns anos, Trigorin não consegue se recordar de forma alguma daquela cena ou da pobre gaivota. A arte não transborda para a vida, ela é um mero instrumento para a realização superficial dos egos de suas personagens, e todo o seu significado se dissipa no vazio da vida real. Nela, as figuras vão se conformando, não lutam, não tem o vigor que costumam admirar nos seres contidos na literatura e no teatro, talvez porque o sentir não lhes soe como o mais importante. Macha aceita um destino cômodo e fácil, desprovido de amor. Miedviediénko aceita uma esposa que não o ame, Arkádina vive unicamente dos holofotes de atriz. Sórin conforma-se com o fim que não fazia parte dos seus sonhos. Polina ama desde sempre Dorn, mas é casada com Chamraiev… E é assim que as personagens vão se apresentando por toda peça.

Não à toa, a estreia de A Gaivota foi um fiasco. Sem heróis ou grandes feitos, a encenação da mediocridade parecia irrepresentável. Onde estaria o teatro, a comédia, a caricatura na peça de Tchekhov? O escritor, diante do fracasso, havia jurado nunca mais escrever uma peça de teatro.

O grande drama humano estava embutido a todo tempo nesse tipo de vida que as pessoas costumam realmente levar. Como representar esse nada, esse vazio que faz parte da vida real? Foi Stanislavski, em 1898, que conseguiu trazer à tona a atmosfera reveladora de A Gaivota. A abordagem naturalista foi perfeitamente destinada à peça de Tchekhov. As observações detalhadas de composições das cenas, a iluminação que denotaria a tristeza, o temperamento, a respiração, as pausas, a velocidade de falar e os trajes das personagens em cada ato se tornaram fundamentais para reproduzir o que o texto puro de Anton Tchekhov não havia deixado claro.

Àquela época, o teatro passava por uma transição. Tradicionalmente, a interpretação dos atores conservava o tom declamante e caricatural das personagens. Essa abordagem era inconcebível na representação de A Gaivota, peça de detalhes e sutilezas, onde o espetáculo estava presente exatamente no que não acontecia.

Em A Preparação do Ator, Stanislavski destaca a imaginação do intérprete como peça fundamental para o novo sistema de interpretação que surgia. A atuação provém da Natureza, de um sentimento interior de construção da personagem. Esse sistema, eu mesma o pude entender nos primeiros passos que dei para o Teatro, quando estava no Ensino Médio, sem que ninguém atribuísse autoria ou técnica. A imaginação era tudo com que eu contava – acreditar nela, enquanto atuava. Muitas vezes, como exercícios antes dos ensaios, tínhamos que utilizar objetos de forma não convencional ou criar situações imaginárias a serem interpretadas sem fala. Àquela época, como intuição, me vinham vários desdobramentos a respeito das cenas teoricamente mais sem sentido e dos objetos mais inusitados. Cadeiras poderiam ser bolsa, colar. Uma composição estática poderia dar origem a cenas bastante movimentadas. O importante era sentirmo-nos como o ser ou o objeto que representávamos. Da mesma forma, o diretor que dava aula ao Stanislavski estimularia um aluno a representar e sentir como se fosse uma árvore. E buscar dentro de si toda a história da personagem, além do papel que ela desempenhava na peça. O ator teria participação fundamental no processo criativo da personagem, transmitindo suas próprias emoções à figura que interpretaria.

Em 1921, o dramaturgo italiano Luigi Pirandello estreou sua peça Seis Personagens à Procura de um Autor, no Teatro Valle de Roma. Não foi uma boa acolhida, tendo em vista que o dramaturgo trazia ao público uma peça desconstruída, que não se assemelhava a um espetáculo, mas apenas a um ensaio teatral. O público ficou indignado.

No palco, um grupo de teatro se prepara para ensaiar uma peça de comédia. Logo no início, interrompe o porteiro seguido de seis figuras bem definidas, vindos pela plateia. Essa interrupção irrita o diretor que, ao perguntar o que fazem naquele lugar, respondem que são personagens em busca de um autor, já que seu criador se negou a inseri-los no mundo da arte. E a peça do Pirandello gira em torno dessas personagens, totalmente consistentes e marcadas pelo que são, apresentando sua história à companhia de teatro e convencendo-lhes de sua realidade, com esforço, pela incredulidade dos atores que ali deveriam representá-los. Por outro lado, os intérpretes da companhia se apresentam na típica caricatura do ator, com primeira-atriz cheia de caprichos, com direito a cachorrinho acompanhando os ensaios, e habituais manifestações de ego dos integrantes do grupo.

O dramaturgo caracteriza as personagens com o cuidado para que não se confundam com atores ou outras figuras da peça. Iluminação, máscaras, tudo determina as personagens numa abordagem a ser considerada até mesmo filosófica. Elas são imutáveis, eternas, enquanto o homem sempre será volúvel, devido as suas diferentes naturezas. A personagem é exatamente o que o autor criou, ela pode se transformar no decorrer da trama, mas é uma mutação esperada, destinada,; jamais deixará a integridade da forma como foi concebida. O homem, por outro lado, tem uma vida propensa a mudanças inesperadas que, no seu decorrer, o transformará, sem previsões do seu fim.

Quando, na obra de Pirandello, os atores tentam assumir o papel das personagens, estas não se reconhecem na “imitação” que fazem delas. O dramaturgo levantará então, através de Seis Personagens à Procura de Um Autor, a questão que relaciona ator/personagem. Se para Stanislavski – que preencheu lacunas cenográficas e interpretativas de A Gaivota, permitindo o reconhecimento da obra de Tchekhov – a personagem é uma criação não só do autor como do ator, ganhando vida somente com a construção que este faz de sua alma, para Pirandello, o ator nunca chegará a verdade da personagem, que é exatamente como o autor o concebeu. A interpretação de uma obra, cheia de subjetividade, não concebe, para o italiano, a integridade de como as personagens foram criadas. A obra do italiano se realiza exatamente para discutir a validade da sua própria arte.

Das questões colocadas por Pirandello sobre a autenticidade de uma encenação à viabilidade de A Gaivota, como teatro, proporcionada por Stanislavski, ficamos separados por uma grande cratera. A possível ponte que podemos fazer entre essas concepções tão díspares é a apresentação de duas obras de comédia, que mais podem fazer chorar do que rir. Tchekhov chama comédia à sua peça dramática, por tratar de homens comuns e seus vícios, mas com tanto naturalismo, que não nos faria rir, mas sim identificar e sofrer por suas personagens. O dramaturgo italiano concebe o humor para muito mais além do cômico, como a capacidade de se refletir sobre a contrariedade que determinada cena nos causa e, em lugar de adverti-la através do riso, senti-la – quando a graça dá lugar a uma percepção maior da nossa natureza e da nossa tristeza.