Existe uma pesada pedra sobre esta página. A sofrida página que traz ecos do passado. Uma melancolia porque os sentimentos não morrem na gente como em geral morrem os relacionamentos, as intimidades e a confiança. Uma página pesadamente aberta como veia jorrante dentro da nossa alma. Não há nada de belo e que gostaria de ser recordado. Mas o temor da parte que nos coube, do quanto erramos de acordo com nossos próprios valores.

Ainda preservamos valores, culpa. Não há nada grande demais que nos obrigue a carregar esses sentimentos, mas existem as nossas escolhas e elas exitam diante do mundo em que interagimos.

Nós sonhamos inocentes com uma amizade sem manchas, brilhante e incapaz de sofrer riscos. Sonhamos com amores verdadeiros. Ideias, sonhos, sentimentos verdadeiros.

Eu ando por ruas com raras árvores, estas débeis. E um enorme céu que parece a redoma de um campo de força. Tudo é desértico e os sorrisos são de embriaguez. Todas as noites, podem ser em dias de semana, nós não dormimos. Ou rabiscamos palavras pesadas e incompreensíveis numa folha de caderno – e chamamos poesia ou filosofia – ou caminhamos perdidos pela estreita avenida principal, numa ciclovia que fazemos de calçada. Seguimos até as praças mais conhecidas de toda gente da cidade, onde podem acontecer os eventos culturais. Nelas não encontramos ninguém, só o coração apertado de planos que um dia fizemos sem imaginar que permaneceriam tão tristes e ruins. Acho que o aperto é porque um dia por ali nos apaixonamos sem saber, que esperávamos algo acontecer, que segredos poderiam surgir, que o vento batia forte e nos prometia que como nos sonhos algo aconteceria, mas nunca aconteceu. Porque estávamos em um deserto, pensávamos que éramos especiais. Porque antes de tudo eu estava sozinha e agora havia alguns ali, também me transformei num nada especial. Não era difícil desprezar o resto do mundo, daquele ponto: uns galhos secos e frios, sem resquício de vida, que lanharam minhas pernas e meu rosto desde pequena, eu os quebraria sem piedade, com toda prepotência que aquele encontro me inspirava.

Acho que isso não me faz bem até hoje: a culpa da prepotência. Sinto vergonha. É uma roupa que nunca gostaria de ter vestido. Alfinetam-me até hoje as costuras ásperas desse desfile medonho. Por aqueles dias velhos e frios, entre os mesmos atos de cada dia. E quando as almas buscavam preenchimento – com eventos, com música, com teatro – a ração era a mesma para todos. Não existiam novidades.

Como um rio poluído por metal pesado contamina as pessoas de um lugar, o ar triste da planície pesou em nossas almas. Quando busquei afeto, esperei sentada que um medo passasse e ele não passou. Quando quis amizade, minha fama esquecida na maternidade já não era suficiente pra brilhar dentre meus antigos fãs – e quem queria fãs? queria amigos! Quando acreditei que viriam comigo desbravar o mundo, recuaram com medo de ficarem pequenos demais. E quando pensei que um deles usufruiria do tanto que a vida poderia lhe dar, ele não experimentou sequer um pouco da grande maravilha que ela oferece.

Se eu fechar os olhos agora vou sentir um vento frio arrepiando minha pele em torno de uma rodoviária velha, pequena e fedida, à noite. Vou descer uma estreita rua que me levará a uma praça e à beira do rio que fica no centro da mediana cidade. Às vezes vou olhar para recepções de hotéis decadentes e ouvir o eco de umas músicas mais antigas ainda. Vou lembrar de um mobília velha dentro de um escritório naqueles prédios achatados e apertados. Vou lembrar das coisas que eram grandes – enquanto eu era criança – e foram se tornando bem pequenas. Quando cheiro de serragem e pão assando me embrulhavam o estômago e eu queria sair correndo porque aquilo devia ser uma terrível receita de bruxa. Quando as ciclovias eram linhas de trem cheias de terra e gatos e cães mortos atropelados ou envenenados e eu me perdia acompanhando aquela trilha fedorenta e via crianças do meu tamanho brincando descalças e melequentas sob um céu indiscutivelmente azul tomado por urubus voadores. Quando no melhor momento do ano minha tia-avó vinha do Rio e nós caminhávamos até a Telerj, eu cheia de medo de uma enorme janela redonda que me parecia uma cabeça de abóbora. Quando a tímida vida meio cansativa da escola começa a findar e eu passo a fazer escolhas, a discursar sobre grêmios, teatro e artes e desisto de ser veterinária. E então quando tudo isso parece pior ainda que antes, porque só eu acredito em determinadas coisas e me vejo sozinha, sem equipe. Quando começo a sonhar em ser heroína para minha própria consciência antes de pensar em medalhas e no mundo. Quando acho que meus sentimentos e opiniões importam a alguém e, que seja uma única pessoa, o que importa é não estar sozinha. Quando das muitas coisas que digo, umas mínimas talvez façam sentido e possa haver alguém para se reunir em volta. Quando a gente se perde no meio dessa gente toda ou da pouca gente. Quando a gente fica ofendida e triste por causa da amizade. Quando a gente começa a ser irônico e por não saber o que dizer, fala o que vem a mente, conta a nossa sorte, como tudo que nos era ruim está começando a mudar. Quando a gente se sente traído porque como poderia supor ao encontrar algo em comum com outra pessoa é que ela jamais mentiria ou trairia nossa confiança. Quando a gente, depois de suportar muito aquele campo de força estrelado e o cheiro de carniça velha que agarrou no nariz desde a infância, sem saída sem amigos sem amor e sem carreira, trancafiado sozinha numa casa escura, toma o desespero verde que restou guardado num canto da casa e sente os músculos da perna dançarem sozinhos, o portão fechado e nenhum conhecido… e alguém consegue chegar, abrir, te levar, te impedir. E quando tudo isso acontece a gente tem certeza que a redoma de força daquele lugar fez muito para que a mente latejasse a quase explodir.

A gente consegue aos poucos sair de lá, construir uma vida e até começa a sonhar com coisas realizáveis. Reconhece o nosso tamanho e como é puro o ar de poder fazer e crescer de acordo com a permissão que nós mesmos nos damos para isso. Posso ser pequeno ou grande, o que importa é o espaço sempre grande do mundo a minha volta. Meu tamanho depende dos átomos humanos que consigo agregar à minha vida.

Mas eu estava lá, naquela pequena bolha em sépia. Estava lá por muitos anos, sonhando que não teria medo de fugir nadando pelo mar e que mesmo lá no fundo aquele espírito iria me atormentar. Como um tiro inesperado numa mulher grávida num dia de sol, perto do mercado de peixes, aquele sangue escorrendo e secando e se misturando com o cheiro podre das traíras velhas, enquanto uma pessoa não muito próxima sentia amargamente pela bela defunta, além de seus pais e seu pequeno filho, e enquanto outras pessoas coloridas cantavam num espetáculo musical músicas de doçura e amor, sem saber que ali perto tinha sido assassinada uma mulher de olhos tristes com um fundo de esperança. Isso é lembrança ao acaso de um retrato velho que me persegue, o retrato amargo do que conheci como amor e que me apunhala como as amizades mal resolvidas que me impelem a perguntar o que são as pessoas, aquela parte mais frágil que justifica até as vilanias, tanto minhas quanto suas. Queria contar a verdade dessas histórias, uma coisa bonita, os homens frágeis, tirar aquela pesada pedra e virar a página para se viver as novas cores, vivas de futuro.